Por Jaqueline B. Ramos
Entrevista com Beatrice Bonami, embaixadora do GAPMIL-Unesco para a América Latina e Caribe
A jovem pesquisadora paulista Beatrice Bonami, de 28 anos, foi nomeada em outubro como embaixadora para a juventude dos países da América Latina e Caribe do Programa de Alianças Global em Literacias de Mídia e Informação (MIL) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a Unesco, conhecido como GAPMIL.
O anúncio foi feito depois de quatro meses de um processo que avaliou nada mais nada menos do que 600 candidaturas. Beatrice foi selecionada juntamente com Jerome Roodsam, do Haiti, para representar e promover o programa no continente sul americano. Outros dez embaixadores farão o mesmo trabalho pelo mundo até 2021.
Graduada em Audiovisual/Educação e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, atualmente Beatrice faz doutorado com dupla titulação pelo Institute of Education da University College London, na Inglaterra. No Brasil, foi professora em uma escola para surdos no interior de Minas Gerais, pesquisadora no Programa de Inclusão Digital Acessa São Paulo e integrou o Programa de Ressignificação dos Telecentros da Secretaria Municipal de Inovação e Tecnologia da cidade de São Paulo, voltado para a população de baixa renda em comunidades periféricas. No início de 2019, levou sua experiência para a Itália, em um estágio de pesquisa na Universitá La Sapienza di Roma, investigando como projetos universitários são convertidos em políticas públicas e iniciativas para a sociedade civil.
“A MIL tem estado em destaque pelo seu potencial de empoderamento do cidadão do Século XXI. Sabemos que ela promove um usufruto e produção da informação mais sustentável e saudável. Em uma época com tantos dados disponíveis e tantas fontes de recursos, compete à educação ensinar aos seus aprendizes e educadores como lidar com esse contexto”, conta.
Nesta entrevista, Beatrice explica o que é o trabalho de Literacias de Mídia e Informação, sua aplicação na prática e seus desafios nesta nova função na Unesco.
O que é MIL e quais são seus principais objetivos?
MIL é a sigla em inglês paro o termo Media and Information Literacy, em português, Literacias de Mídia e Comunicação. A pesquisa nessa área tem variadas dimensões, bem como sua aplicabilidade, sua regulamentação política e seus índices de avaliação globais. Em linhas gerais, seu objetivo é mostrar para as pessoas a importância da mídia e de outras fontes de informação e os mecanismos para seu entendimento pleno e crítico, para embasar tomadas de decisões inteligentes. Isso permite que os cidadãos tenham acesso às competências e habilidades em mídia e informação.
É possível então afirmar que esse acesso e compreensão mais críticos à informação beneficiam processos de educação?
Sim. A MIL tem estado em destaque pelo seu potencial de empoderamento do cidadão do Século XXI. Estudar a MIL é justamente uma tentativa de mapear como ocorreu a emersão desse conceito e como sua aplicação ocorre em ambientes pedagógicos e de produção de conteúdo. Sabemos que ela promove um usufruto e produção da informação mais sustentável e saudável. Em uma época com tantos dados disponíveis e tantas fontes de recursos, compete à educação ensinar aos seus aprendizes e educadores como lidar com esse contexto.
“Sabemos que ela (MIL) promove um usufruto e produção da informação mais sustentável e saudável. Em uma época com tantos dados disponíveis e tantas fontes de recursos, compete à educação ensinar aos seus aprendizes e educadores como lidar com esse contexto.”
Como se dá a aplicação da MIL para esse empoderamento do cidadão?
Isso pode se dar de algumas formas. Por exemplo, quando fui professora na escola Rural de Assistência à Deficientes Auditivos no interior de Minas Gerais, estudantes surdos tinham dificuldade em apreender a Língua Portuguesa por ser um idioma fonético, como a maioria das línguas. Isso acarretava não só em um atraso do aprendizado, mas da própria lógica de comunicação, já que a sequência narrativa de fatos depende da compreensão da linguagem. Foi então que propus o uso de história em quadrinhos e narrativas fílmicas para que os estudantes pudessem entender a lógica de propagação de mensagens e a sequência de fatos. Essa proposição foi um sucesso entre os aprendizes, que criaram narrativas baseadas em suas vidas e em histórias ficcionais.
A MIL se aplica nesse caso por proporcionar uma compreensão mais ampla da habilidade de comunicação. Ela atribui ao estudante a potência e a habilidade de contar a própria história sob seu ponto de vista. Neste caso, a MIL empoderou os jovens para que se tornassem protagonistas e narradores de suas próprias vidas.
E qual é a influência da Internet e das novas mídias neste processo?
Inicialmente o termo “literate” se referia à habilidade básica de escrever sobre uma superfície com uma caneta, pincel ou lápis para compreender a informação ali representada. Com o advento da prensa, da educação de massa e, bem recentemente, com a Internet, o conceito “literacy” foi reelaborado e expandido e se distanciou de seus sentidos originais, se referindo a novas habilidades e competências.
Agora inclui a compreensão crítica associada com características dos formatos particulares da mídia e da informação, bem como com o processo cognitivo, com o conhecimento e com atitudes e habilidades necessárias na sociedade do conhecimento do Século XXI. Diz respeito à habilidade de identificar, compreender, interpretar, criar e computar, usando materiais impressos e escritos associados em variados contextos. Envolve um aprendizado contínuo visando possibilitar que indivíduos alcancem seus objetivos, desenvolvam seus conhecimentos e potenciais para participação ativa na sociedade.
Há ainda algumas disparidades na esfera do termo, que também são frutos da emergência do contemporâneo conectado em países com diferentes realidades econômicas, políticas e culturais. A Unesco reconhece que não sabe exatamente o impacto que as tecnologias emergentes e sua potencial convergência poderão ter em cada indivíduo no futuro, bem como sobre a comunicação e a construção das sociedades do conhecimento. Por isso continuamos nossas pesquisas e estudos.
Quais são as bases conceituais do GAPMIL?
Entre as principais colocações da Unesco sobre a MIL está a alegação que defender o direito de desenvolvimento dessas habilidades é assegurar o próprio direito humano à expressão e à educação. Assim, se direciona a pesquisa para, primeiramente, entender o que são os conceitos compostos que envolvem o radical “literacias”. Posteriormente, a ideia é observar como são veiculados, em que contextos e por quais autores, que podem ser individuais ou corporativos.
A Unesco cunha o conceito de MIL abordando a educação como forma de potencializar o cidadão, jovem ou adulto, a ser protagonista de seu próprio contexto e um sujeito ativo em sua comunidade ou sociedade.
Como se deu o processo para a sua nomeação como um dos 12 embaixadores para para o GAPMIL no mundo? Quais são suas expectativas para esse trabalho?
O processo começou em junho de 2019 e o resultado foi anunciado na última semana de outubro. A seleção ocorreu segundo a avaliação de um plano de ação que elaboramos e contou com o parecer de pessoas contratadas pela Unesco na sede em Paris e em escritórios regionais.
Minha expectativa é entender em que as MIL podem contribuir em projetos latino americanos de educação e o que os principais atores estão executando como projetos correlatos. Além desse diagnóstico regional, a ideia é promover a interação entre projetos, já que enfrentamos um dos piores rankings de educação do mundo. E ainda fortalecer o acesso às Tecnologias de Informação e Comunicação, que chamamos de TIC, já que alguns países peninsulares tem dificuldades técnicas via satélite. Estamos averiguando parcerias que podem tentar solucionar esse problema.
“Minha expectativa é entender em que as MIL podem contribuir em projetos latino americanos de educação e o que os principais atores estão executando como projetos correlatos.”
Como acha que sua experiência vai ajudar na missão de embaixadora do GAPMIL?
Sempre estive envolvida com educação em algum nível, experiência que me proporciona perspectivas diversas sobre uma mesma situação. Quando era professora, tinha contato direto com aprendizes. No Programa de Ressignificação dos Telecentros em São Paulo, estava na parte de gestão, planejamento e concepção de projetos. Na Escola do Futuro, no Programa de Inclusão Digital Acessa São Paulo, me envolvi com provisão tecnológica e formação de professores. E, recentemente, tive a chance de aperfeiçoar minhas habilidades de pesquisa na área de Big Data (análise e a interpretação de grandes volumes de dados de grande variedade) e visualização de dados. Para cada situação que me encontro envolvida com educação componho um quebra cabeça na minha mente. Minha experiência me auxilia na resolução desses desafios.
Quais são as especificidades e os principais desafios da América Latina no que diz respeito à prática da MIL?
O principal desafio da América Latina é ser um continente extremamente diverso. Tão contrastante ao ponto de ser difícil executar estudos comparados entre países, como Peru e Brasil, por exemplo. As estruturas políticas e sociais podem ser desafiadoras, o que demanda estruturas específicas para cada região, às vezes até para cada cidade. Além disso, é um continente populoso e reunir essas iniciativas requer canais de comunicação e interação que eu e Roodsam tentaremos criar e manter. Por fim, como boa parte dos países apresentam algum tipo de crise, financiamento de projetos pode ser um desafio, principalmente quando se envolve a provisão da parte técnica e de serviços, como pesquisadores e professores.